O caso do ex-presidente brasileiro coloca um conflito entre a democracia e o Estado de Direito. Não há boa solução, mas desta vez a democracia deve prevalecer sobre a justiça.
Traduzido do Jornal The New York Times, por Jorge G. Castañeda
O Sr. Castañeda foi ministro das Relações Exteriores do México de 2000 a 2003.
O Brasil realizará uma eleição presidencial em 7 de outubro, a oitava desde o retorno da democracia em 1985. Ela representa um choque fundamental entre democracia e Estado de Direito, entre eleições livres e justas e o devido processo legal. Parte dessa contradição foi explicada recentemente por Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente brasileiro e aspirante a candidato universalmente conhecido como Lula, que registrou sua candidatura da prisão em 15 de agosto.
Espera-se que o complicado sistema eleitoral e judiciário brasileiro decida nos próximos dias se admite sua candidatura ou, mais provavelmente, o impede de concorrer. Isso seria um erro. Ter Lula nas urnas fortalecerá a democracia no Brasil; este último é uma condição necessária, embora não suficiente, para o estado de direito.
Os apoiadores do Sr. da Silva e ele argumentaram que lidera nas pesquisas; que ele está sendo impedido de concorrer por causa de uma acusação de corrupção relativamente pequena, baseada em confissões obtidas por meio de delação premiada, que ele e muitos juristas contestam; e que o sistema judiciário brasileiro, graças a uma série de leis anticorrupção contra a ineficácia das regulamentações existentes, tornou-se o árbitro das eleições do país.
Seus oponentes, juntamente com os juízes que o condenaram a 12 anos de prisão, bem como parte da mídia brasileira, insistem na substância da questão, não no processo em si. Segundo eles, Lula foi condenado por corrupção, menor ou não, e perdeu o recurso ao Supremo Tribunal Federal para permanecer em prisão domiciliar até que todos os seus julgamentos terminem. Além disso, eles enfatizam, ele ainda está sendo julgado por outras seis acusações, embora o processo completo de apelação na primeira acusação ainda não tenha terminado. Por último, há uma lei chamada tábula rasa no Brasil, assinada pelo próprio então presidente Lula, estipulando que qualquer pessoa condenada por corrupção não pode se candidatar. Então, seja porque ele está na prisão ou porque foi condenado por corrupção, é quase certo que ele não estará nas urnas.
Os partidários de Lula respondem que um dos juízes envolvidos, Sergio Moro, está realizando uma vingança política contra ele e o partido que ele ajudou a fundar há quase 40 anos. Eles também alegam que o apartamento à beira-mar supostamente dado a ele por uma empresa de construção para a qual ele contratou não é dele nem de sua falecida esposa. Seus adversários respondem que Lula não está sendo destacado e que ele não deve gozar de nenhum privilégio especial simplesmente porque é popular, ou foi presidente ou deseja concorrer a um cargo.
Não há uma boa solução para esse dilema, especialmente em um país que tem uma elite política terrivelmente desacreditada e mal está emergindo da pior recessão econômica em décadas. Jair Bolsonaro, um candidato de extrema direita, aparentemente aconselhado, entre outros, por Steve Bannon, está em segundo lugar nas pesquisas depois de Lula. Ele apela às vertentes racistas, homofóbicas e sexistas sempre presentes na sociedade brasileira e a um crescente sentimento antissistema. Claramente, Bolsonaro é uma ameaça maior à democracia no Brasil do que os excessos de Lula, se todos fossem confirmados.
Permitir a candidatura de Lula aplacaria seus apoiadores, que são muitos, mas enfraqueceria severamente a sensação de que depois de quase dois séculos de privilégios, corrupção, ausência de leis iguais para todos e queda dos poderosos, o Brasil estava finalmente entrando na modernidade em um domínio onde o país e seus vizinhos sempre se saíram pior: o estado de direito. Mas negar a dezenas de milhões de eleitores de Lula a possibilidade de votar em seu ídolo de volta ao palácio presidencial do Planalto quase significaria privá-los de seus direitos.
A causa do Sr. da Silva foi endossada por figuras internacionais em todo o mundo. Mais de uma dúzia de membros do Congresso dos Estados Unidos, incluindo o senador Bernie Sanders, escreveram recentemente uma carta ao embaixador brasileiro em Washington. Exigiram a libertação de Lula enquanto tramita o processo de apelação e condenaram o uso do combate à corrupção como ferramenta para perseguir políticos da oposição. O Papa Francisco recebeu há poucos dias um pequeno grupo de amigos brasileiros, argentinos e chilenos de Lula e ouviu atentamente suas queixas.
Enquanto Lula insiste que sua única opção está em sua própria candidatura, seu Partido dos Trabalhadores, ou PT, tem um Plano B. Nesse cenário, o ex-prefeito de São Paulo e atual candidato a vice-presidente Fernando Haddad acabaria nas urnas se Os protestos de Lula, os recursos legais e os esforços de campanha internacional se mostram inúteis. Caso o ex-sindicalista consiga transferir votos suficientes para o seu substituto, ele pode vencer no segundo turno marcado para 28 de outubro. de uma forma ou de outra, os desafios para o Brasil podem ser enormes.
Uma complicação adicional surge do contexto regional em que esse drama está se desenrolando. Em várias nações latino-americanas, as proibições dos titulares de oponentes que concorrem a cargos se tornaram um padrão. Na Nicarágua, em 2016, Daniel Ortega derrubou ou intimidou um número suficiente de rivais – especialmente o mais forte, Eduardo Montealegre – para finalmente vencer com 72% dos votos, praticamente incontestados. Na Venezuela este ano, Nicolás Maduro garantiu que os principais candidatos da oposição, Henrique Capriles e Leopoldo López, não pudessem concorrer. Apenas um candidato semi-falso se opôs a Maduro.
Em outros países, também ocorreram tentativas de desencorajar ou proibir os candidatos de participarem das urnas. Eles vão desde o líder da oposição mexicana Andrés Manuel López Obrador em 2005 (ele foi finalmente eleito em julho) até vários candidatos guatemaltecos impedidos por acusações de corrupção, cláusulas antinepotismo e violações de direitos humanos.
Assim como no Brasil, muitos desses casos – nem todos, obviamente – são complicados. Alguns competidores são desqualificados por motivos válidos, ou pelo menos legais. Outros são vítimas inquestionáveis de perseguição política. É difícil contestar a noção de que o caso de Lula tende a se enquadrar nas categorias venezuelana e nicaraguense, e não nas outras. Só que a democracia brasileira não está desmoronando, manifestantes não estão sendo assassinados nas ruas, estudantes não estão sendo presos e a mídia não está amordaçada. Como The Economist lamentou alguns meses atrás, pode haver um governo de juízes no Brasil, mas não uma ditadura.
No final das contas, embora acredite que o escândalo da Lava Jato, assim como a diligência de juízes como Moro, tenham servido bem ao Brasil e à América Latina, prefiro ver Lula nas urnas do que na cadeia.
As acusações feitas contra ele são muito frágeis, o suposto crime tão mesquinho (até agora), a sentença tão descaradamente desproporcional e as apostas tão altas que na América Latina de hoje, a democracia deveria superar – por assim dizer – o estado de direito. Em um mundo ideal, os dois andam juntos e certamente não se chocam. No Brasil, eles fazem. Eu vou com a democracia, com verrugas e tudo.
Jorge G. Castañeda, ministro das Relações Exteriores do México de 2000 a 2003, é professor da Universidade de Nova York e colunista de opinião.
Siga a seção de opinião do The New York Times no Facebook e Twitter (@NYTopinion) e inscreva-se no boletim informativo Opinion Today.
TRADUZIDO POR LUCAS ELLER, NOVA YORK.
Assine ao www.nytimes.com, o jornal mais completo, atualizado e imparcial do mundo. Participe das discussões entre seus assinantes, e peça à sua equipe que publique mais matéria em português.